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Psicovid19

Saúde mental em tempos de pandemia

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Saúde mental em tempos de pandemia

Off the beaten track

27.03.20

Tropecei neste artigo e identifiquei-me com aquilo, assim à bruta. Eu, que sou dado a melancolias, já começo a dar por mim com saudades do tempo pré-apocalipse. Nessa altura, naturalmente, também me queixava, e tinha saudades de outro tempo pré-qualquer-coisa-do-momento. E assim, andando para trás, lembrei-me do Steve, um gajo simpático de Chicago que conheci na Islândia há uns vinte anos. Há vinte? Porra, há vinte.

Não era nenhum nabo, o Steve. Era um WASP informado que vivia no lado certo da cidade, sabia que existia um mundo complexo para lá do alpendre da casa da mãe (mum is like, hum, an interior designer, you know?) e tinha sensibilidade social e ambiental. O cenário da ilha - a Björk só poderia ser islandesa - e a idade convidavam a reflexões pseudo-filosóficas mais ou menos regadas com a cerveja local. Sobre a natureza e a vida moderna e paleio do género nesse longínquo ano, tão analógico, de 1999 tirávamos conclusões inequívocas e finais: isto está tudo uma porra. Fucked. Ele anuía perante as minhas considerações existenciais e exortações à mudança, mas respondia, invariavelmente e com um encolher de ombros: but then who cares, you know?

Entretanto, todos estes anos passaram. E ficámos ainda mais estúpidos. Dumb. No início era a cena da globalização. Globaliza não globaliza antiglobaliza. As techs, as dot-com. Os telefones, as viagens, os gadgets. A net e o hi5 e o não-sei-quê que olha-até-já-fechou. O faicebuque. As cenas que agora são muita baratas. A China e coiso. O tempo acelerado. E certas coisas passaram, devagarinho e de pantufas, a ser normais. A comida vem dentro de uma caixa. Agora até já dá para aquecer a comida dentro da caixa. Who cares, you know? Os fins de semana passaram a ser dias como os outros. Tudo está aberto às horas todas. Há guito. Que fixe, man.

Depois veio a crise. Já não há dinheiro, mas há budgets e montes de cenas “optimizadas”. Os gajos da finança lixaram isto, mas também têm as soluções. E os caixões. Tudo é obsoleto. Deslocaliza-se, vai para o online, desmaterializa-se. Automático. Smart. De um lado o tech e a cena virtual, do outro lado a malta a penar sem dinheiro, sem vida e sem email. Trash. Não reconvertível. As tragédias afinal são liabilities, geríveis com comunicação e networking. O Exxon Valdez era um petroleiro que em 1989 derramou crude e provocou um gigantesco desastre ambiental na costa do Alasca; A Deepwater Horizon (onde estava ao certo?...) em 2010 foi um escândalo corporate e teve que pagar imenso dinheiro. Um prejuízo do catano.

E nós, os dumb, ficámos dumber. Inicialmente até parecia que não. A malta passou a viajar (ainda) mais, a preocupar-se com o corpo, com a comida, com os animais. O ambiente. O bem-estar, a cena emocional e tal. Em vez de empresários havia empreendedores, tipos novos e fofos vestidos de t-shirt e jeans, a criar apps e cenas green que mudariam o mundo as we know it. Mas depois, dumber. Lembro-me de ver uma mulher a fazer um escarcéu porque numa viagem de barco percebeu que o tipo que nos levava de passeio aproveitava para pescar à linha. Please. Oh my God. Stop.

 

Vieram os super-alimentos, que rapidamente degeneraram numa liturgia absurda de sementes de goji, suplementos e abacates trazidos do outro lado do mundo pela manhã. E a malta começou a ter uma baba pseudocientífica ao canto da boca. Os estudos que mostram. Eles dizem que isto faz bem. E de repente a Gwyneth andava a vender clisteres para purificar a tripa (wtf??), e uns looneys começaram a dizer que as vacinas eram treta e que a terra não era redonda. Uma tipa que pergunta no faice uma forma de tirar os piolhos da filha sem os matar. No shit. A Medicina, também entorpecida pelo management, foi o canário na mina, e rapidamente esquecida pela barulheira das terapias da treta, as filosofias da treta. A velha banha da cobra passou a ser holística e multidisciplinar.

Dumber. Viajávamos, mas com wifi e com phones, a querer fugir do beaten track, mas a hesitar, porque a rede é fraca. Echetegue. Tínhamos putos, mas poucos e tarde, porque a vida. E quem os tinha virava helicopter parent, cuidando, e em cuidados, com o seu Eusebiozinho. (Quem é esse, mano?). Perdemos a nossa história enquanto espécie. Não percebemos que para os leões somos presas. E já não notamos que deitamos leite das mamas para dar comida aos filhos, porque a amamentação é uma partilha única entre a mamã e o seu bebé e é um momento muito intenso de emoções e o carago.

Os bichinhos, coitadinhos. O gajo que acena para a foto no zoo com a mão junto ao predador antes de ser arrancada. Já não sabemos que somos carne e somos terra. Dantes lixávamos o planeta com o sentimento de culpa de sermos parte dele, agora poupamos nas palhinhas (onde andam elas?) para salvar o iplanet dos quais somos utilizadores preocupados com o serviço. Já não somos de cá. Gostamos muito dos animais - fico com tanta pena, sentem como nós – mas não porque existem como nós existimos, os bons e os maus, os muito fofinhos e os menos fofinhos. E que somos parte de ecossistemas que são implacáveis, sem pena e sem sentimentos. Incluindo o cabrão do vírus que, ainda por cima, nem sequer é bicho. É areia da sopa primordial, das selvas e das tundras da Terra onde nós metemos as patas sem aviso nem cuidado, espezinhando à procura de lambarices, remédios para aumentar a tusa e mais tempo de battery.

Zoamos da Natureza e da Medicina, que impede que ela nos mate como mamíferos. Ficámos medrosos, porque não percebemos nada, não aprendemos nada, mas também ficámos arrogantes, e achamos que podemos parir numa banheira em segurança e neutralizar o poder acumulado de milhões de anos desde que tenhamos os shakras alinhados. Já nem nos conseguimos lembrar.

Os cientistas são bons se forem nerds, os intelectuais são gajos chatos. Quando o vírus chegou, estávamos no sofá, anafados, a fazer scroll. Dumb. Sem cultura e sem passado. A sofrer com micro-agressões e o safe space.  Neuróticos, a contar a pulsação no smartwatch. Falaram-nos de RNA viral e da gripe espanhola. Who cares, you know? A senhora reitora começa a lecture anunciando I identify myself as a female and my preferred personal pronouns are she and her. Porra, pá.

A Psiquiatria mantinha-se cada vez mais convencida que era neuro-bio-cerebro-coisa. Os psicofármacos e os neurotransmissores e a sanfona do ainda-não-se-sabe-mas-vai-se-saber. E os adverse life events, claro, sempre um problema a atrapalhar os prognósticos e as remissões. À malta sabia-lhe a pouco, e sem reconhecer o seu próprio cheiro a falta de dinheiro, ansiedade e dias mal vividos, virou-se para os coaches e para messias da auto-estima e pensamento positivo. A sofrer, sim, e ainda por cima com vergonha. You’re not good enough. Sem saberem, como dizia um poeta - esses gajos com a mania - que o mistério da vida é ela não ter mistério nenhum. Começámos isto em má forma. Fucked. Não sabemos contar a história da nossa vida, porque todos nos disseram que não era importante, mas agora pagamos o preço de não sabermos quem somos.

O Steve também é médico, e deve estar a trabalhar, perto, do outro lado do pond. Welcome to the suck. Nunca fomos exactamente amigos, pá, mas sabes? Estou mesmo cheio de saudades tuas. (But then, who cares, you know?).

 

Tiago Santos

 

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