O impacto do isolamento nas perturbações do comportamento alimentar
O novo coronavirus chegou e em bem pouco tempo virou o mundo de pernas para o ar. Não bastasse o isolamento social e todos os danos daí resultantes, vivemos ainda na incerteza e imprevisibilidade da data do retorno à normalidade. Assim, cinco semanas passadas desde o primeiro caso identificado em Portugal, é já possível começar a sentir alguns dos estragos na nossa saúde mental.
Um artigo publicado em Fevereiro deste ano na Lancet descreve, de forma bastante clara, o impacto do isolamento na saúde mental. Os sintomas mais comummente descritos são os depressivos, ansiosos, de stress pós-traumático, perturbações do sono e irritabilidade, apontando-se como principais factores de stress a duração da quarentena, o medo de contrair a infecção, o tédio, a frustração, a escassez de bens essenciais, a insuficiência ou desadequação da informação sobre a doença, a perda financeira e o estigma.
Entre os factores de risco para pior outcome psicológico durante o período de isolamento social, destaca-se, entre outros, a história pessoal de doença psiquiátrica, associada também a mais sintomas de ansiedade e sentimentos de raiva após a quarentena.
As pessoas com história de perturbação do comportamento ou alimentar ou padrões alimentares disfuncionais, representam, nesta altura, um grupo particularmente vulnerável. De facto, verifica-se agora um risco elevado de recaída ou agravamento da sua patologia, não só pelo medo da infecção, mas também pelo impacto da quarentena (nas suas diversas vertentes) e pelas barreiras ao acesso aos cuidados de saúde durante a pandemia.
O medo constante de poder ser infectado pode aumentar a sensação de falta de controlo - que em pessoas com perturbações do comportamento alimentar frequentemente despoleta alguns comportamentos na procura da reaquisição da sensação de controlo - , podendo resultar assim no aumento das restrições alimentares ou de comportamentos extremos de tentativa de controlo de peso (p.e. vómito provocado, uso de laxantes…). Esta sensação de falta de controlo e de constante ansiedade pode também resultar numa maior frequência ou intensidade dos episódios de binge eating – episódios em que a pessoa come de forma excessiva e descontrolada, uma quantidade de alimentos considerada exagerada pela maioria das pessoas e que terminam apenas quando se atinge um estado de intenso desconforto físico.
Por outro lado, o estado de emergência, quer pelo isolamento social, quer pela restrição da liberdade de circulação a ele associados, pode contribuir também para a manutenção ou agravamento da psicopatologia associada às perturbações do comportamento alimentar, nomeadamente:
- A limitação da prática de exercício pode intensificar o medo de engordar, aumentando consequentemente as restrições alimentares e comportamentos que tenham como objectivo o controlo do peso;
- A exposição constante à comida de casa, e maior acesso a comidas hipercalóricas pode desencadear com maior facilidade episódios de binge-eating, entre as pessoas com perturbação de comportamento alimentar deste tipo;
- A menor variedade e acessibilidade à comida, e dificuldade, por exemplo, de planeamento das refeições ou de cumprir as refeições idealizadas poderá representar um factor de stress significativo para pessoas com perturbação do comportamento alimentar;
- O isolamento social, já comummente associado a este tipo de patologia, acaba por representar um obstáculo ao funcionamento interpessoal, limitando as interações sociais, interações essas que se demonstram, nestes casos, fundamentais no processo terapêutico (como a exposição do corpo e as refeições em público, por exemplo), contribuindo também para a desvalorização do peso e da forma física;
- Ambientes familiares disfuncionais ou conflituosos podem desencadear um agravamento de alguns sintomas;
- Em pessoas que tenham, para além da perturbação do comportamento alimentar, qualquer outro diagnóstico psiquiátrico – depressão, ansiedade, perturbação obsessivo-compulsiva, perturbação de stress pós-traumático, perturbação de abuso de substâncias… – o stress resultante da situação actual de pandemia pode agravar os sintomas da doença psiquiátrica co-mórbida, contribuindo assim para um agravamento da psicopatologia da perturbação do comportamento alimentar.
Sabemos que este é um período difícil para todos, mas poderá ser particularmente mais custoso e com desafios adicionais para algumas pessoas. Assim, realça-se uma vez mais a importância do reforço do acompanhamento destes indivíduos por telemedicina, de modo frequente e atento, quer pelos médicos de família, quer pelos psiquiatras ou psicólogos, de forma a manter a estabilidade clínica.
Mais se acrescenta que quem se encontra em acompanhamento médico no contexto de uma perturbação do comportamento alimentar não deve, em momento algum, interromper a medicação ou psicoterapia por moto próprio e, em caso de sentir agravamento da ansiedade, tristeza, angústia ou dos comportamentos de tentativa de controlo do peso, deve entrar em contacto com o médico, psicólogo ou psiquiatra assistente.
Mafalda Corvacho
Referências:
Brooks, S. K., Webster, R. K., Smith, L. E., Woodland, L., Wessely, S., Greenberg, N., & Rubin, G. J. (2020). The psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the evidence. Lancet, 395(10227), 912-920. doi:10.1016/s0140-6736(20)30460-8
Huremocic, D. (2019). Psychiatry of Pandemics - A Mental Health Response to Infection Outbreak. Manhasset, NY: The Springer. doi.org/10.1007/978-3-030-15346-5