Saúde Mental: como se organiza a linha da frente ?
Nos últimos dois meses, tem-se assistido nos media ao aparecimento de uma profusão de entrevistas, artigos de opinião e estudos sobre o tema da saúde mental no contexto da pandemia COVID-19.
A maioria desses trabalhos descrevem com maior ou menor detalhe o impacto que a COVID-19 tem tido em diversos aspetos da saúde mental da população portuguesa, assinalando maioritariamente o aparecimento, transversal aos vários escalões etários, de sintomas de ansiedade, irritabilidade, depressão e insónia, o que é coincidente com os dados globalmente reportados pelos países atingidos pela pandemia. Os artigos entretanto publicados em revistas científicas internacionais reforçam estes achados, ainda que com diferenças eventualmente atribuíveis aos determinantes de saúde nas diversas regiões (ex. desenvolvimento global do país, nível de equidade, literacia, modelo de cuidados e cobertura sanitária).
Como costumam evoluir os problemas de saúde mental que afectam as pessoas durante os períodos de emergência? Embora a actual pandemia tenha aspectos peculiares que dificultam a previsão, sabe-se de outras situações análogas que na maior parte das pessoas os sintomas são de natureza autolimitada, acabando por desaparecer completamente com o tempo, havendo uma proporção menor de pessoas que mantém sintomas de forma mais prolongada e intensa (15%) e um pequeno grupo (3-4%) que apresenta perturbações psiquiátricas mais graves, algumas das quais se podem iniciar meses após o acontecimento inicial (ex. perturbação de stress pós-traumático).
No caso da actual pandemia, ao impacto na população deve somar-se o impacto sobre os profissionais de saúde, particularmente sobre os que estão na chamada linha da frente, em contacto direto com os doentes infetados pelo SARS-CoV-2.
Neste contexto tão difícil, como devem os países e as sociedades organizar-se de forma a dar resposta às múltiplas necessidades que surgem na área da saúde mental? De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), através de quatro níveis: autocuidados (ex. literacia, informação regular mas não excessiva sobre a pandemia, boas rotinas de trabalho, lazer e sono), estruturas da comunidade (ex. linhas telefónicas de apoio, ações de municípios, juntas de freguesia, associações não governamentais, entidades do sector social e privado), cuidados de saúde primários (para pessoas com sintomas persistentes leves a moderados) e cuidados diferenciados de saúde mental (para pessoas com sintomatologia mais intensa e/ou prolongada). Nestes dois últimos níveis, a OMS preconiza desde há muito a sua articulação funcional através de equipas multidisciplinares (médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, psicomotricistas, terapeutas da fala, etc.), dado esta ser a única forma cientificamente efectiva de responder às necessidades das populações, numa óptica de saúde pública.
Dois meses passados desde o início da pandemia, e numa altura em que se começa a aplicar um processo de desconfinamento, devemos tentar ver até que ponto Portugal deu resposta aos vários níveis de cuidados. Sem prejuízo de uma análise com rigor científico, que terá de ser efectuada, é inquestionável que tem surgido dirigida diretamente aos cidadãos uma grande quantidade de iniciativas, fundamentalmente nas áreas da informação, literacia sobre a infeção pelo SARS-CoV-2, conselhos sobre autocuidados, oriundas principalmente de entidades não governamentais. A resposta das estruturas da comunidade foi também robusta, com aparecimento de várias linhas de apoio, o que merece particular destaque num país ainda com lacunas significativas em iniciativas de promoção e prevenção de saúde mental.
E que ocorreu na linha da frente, na prestação de cuidados de saúde mental? Mais uma vez, lendo alguns dos artigos publicados recentemente nos media, poder-se-ia ser levado a pensar que não houve uma resposta efectiva por parte dos serviços públicos às necessidades das populações. A realidade, no entanto, é completamente distinta, e deve ser transmitida com clareza aos leitores.
Em consequência da pandemia COVID-19, os Serviços Locais de Saúde Mental (SLSM) e os Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) reorganizaram-se no sentido de dar resposta às novas necessidades, mantendo a assistência aos doentes já seguidos. Adaptando à especificidade da situação actual um modelo de intervenção elaborado previamente para situações de emergência, assente na articulação directa entre as Administrações Regionais de Saúde, os ACeS e os SLSM, foi rapidamente implementada uma resposta transversal em todo o país, integrando os diferentes níveis de cuidados e os diferentes grupos profissionais organizados em equipas multidisciplinares, permitido desse modo uma intervenção local, próxima das populações.
Para além de assegurarem as consultas, maioritariamente feitas por telefone, o internamento, a urgência psiquiátrica e o apoio aos restantes serviços hospitalares, os SLSM dão resposta aos doentes COVID+, em contexto hospitalar ou de "internamento domiciliário", às suas famílias, e criaram gabinetes para apoio aos profissionais de saúde que estão na linha da frente. Nas últimas semanas foram feitos milhares de consultas, e instituíram-se novas formas de trabalho (reshape health care).
Os ACeS, para além da resposta aos quadros ligeiros e moderados, desenvolveram iniciativas de prevenção do stress e do burnout, de apoio às equipas que trabalham nas Áreas Dedicadas Covid-19 e de ligação com as linhas locais de apoio emocional. Tem também sido desenvolvido trabalho com as áreas de Saúde Pública, Dependências, Cuidados Continuados, Violência Doméstica e Proteção de Jovens.
Neste contexto, apesar de limitações estruturais há muito conhecidas, nomeadamente a escassez de recursos humanos das equipas multidisciplinares (principalmente de não-médicos), os Portugueses podem ficar seguros que os seus serviços públicos (ACeS e SLSM), em articulação estreita entre si, estão a trabalhar afincadamente para garantir a proximidade e a continuidade de cuidados às populações atingidas pela pandemia Covid-19, assim como aos profissionais que se encontram na linha da frente.
Ao contrário do panorama das últimas duas décadas, em que a saúde mental raramente teve a visibilidade mediática que se justificava, a pandemia COVID-19 trouxe várias questões da saúde mental para primeiro plano, o que constitui uma oportunidade única a todos os níveis.
Pensar a saúde mental nos dias de hoje vai muito para além da ausência de doença, e abrange numa lógica de saúde pública uma multiplicidade de factores transversal a todas as áreas da sociedade, com implicações na forma como se organizam as actividades de promoção, prevenção, prestação e reabilitação. Esta lógica assume especial relevância nas situações de particular fragilidade, como é o caso das Pessoas mais velhas.
É impossível abarcar esta multiplicidade de cenários e variáveis sem ser através da multidisciplinaridade: o trabalho em equipa multidisciplinar, com especialização das competências de cada grupo profissional, é a equação fundamental para responder a necessidades e para monitorizar os níveis de bem-estar, nas diferentes dimensões e ao longo da vida.
Por tais motivos, os serviços públicos estão e estarão sempre particularmente atentos a esta perspectiva multidisciplinar, a qual constitui um marco conceptual e organizativo de que os Portugueses não podem prescindir.
MIGUEL XAVIER, DIRECTOR DO PROGRAMA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL/DGS;
ANA MATOS PIRES, COORDENADORA REGIONAL DE SAÚDE MENTAL/ARS ALENTEJO;
TERESA MAIA, COORDENADORA REGIONAL DE SAÚDE MENTAL/ARSLVT;
MARIA DO CARMO CRUZ, COORDENADORA REGIONAL DE SAÚDE MENTAL/ARS ALGARVE;
JOÃO REDONDO,COORDENADOR REGIONAL DE SAÚDE MENTAL/ARS CENTRO;
JORGE BOUÇA, COORDENADOR REGIONAL DE SAÚDE MENTAL/ARS NORTE;
ANTÓNIO LEUSCHNER, PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE MENTAL
(Publicado ontem no Expresso)