Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Psicovid19

Saúde mental em tempos de pandemia

Psicovid19

Saúde mental em tempos de pandemia

Ser Médico Psiquiatra em Tempos de Pandemia

31.03.20

Correndo o risco de se tornar num monólogo maçador, decidi, ainda assim, partilhar este texto. Longe de constituir uma peça informativa, sendo na verdade apenas um conjunto de reflexões pessoais, acredito que possa ter alguma utilidade, permitindo ao público geral um breve vislumbre ...“do outro lado da secretária” – isto porque, hoje em dia, os divãs estão em extinção!

Numa altura em que os profissionais de saúde são (incorretamente!) aclamados como heróis, torna-se quase desonroso pertencer a esta classe e não estar na linha da frente - “Então como vai a luta? Tem sido muito cansativo o trabalho? É pá tenho mesmo orgulho em ter um amigo Médico (leia-se: Enfermeiro/ Técnico de Saúde/ Auxiliar) que dá o corpo às balas...”, “Tenho a certeza que vocês vão dar cabo do bicho” – são apenas alguns dos comentários tipo que, todos nós, profissionais de saúde, vamos ouvindo.

“Mas então na Psiquiatria estão a dar consultas, pelo telefone...? Não vão mesmo lá para a frente, com os escafandros... fazer testes, dar luta ao vírus?” – a réplica que, verbalizada ou não, se adivinha em muitos casos, quando se explica o esforço que os Serviços de Psiquiatria e Saúde Mental estão a fazer, para - vendo-se obrigados a limitar a intervenção presencial - manterem a resposta  de proximidade aos seus utentes. Alargando até a sua atividade, para dar resposta a todo um conjunto de “novos doentes”, que desenvolvem sintomatologia psicológica e psiquiátrica, reativa à crise de saúde pública que se vive.

Uma resposta concertada, a nível nacional, de intervenção psicológica e de saúde mental em catástrofe, está a progredir a passos largos (nalguns sítios a uma velocidade superior à de outros) para, de forma engenhosa e que certamente nos deixará a todos orgulhosos, dar resposta às necessidades da população, com os recursos que, com algum eufemismo, são inferiores ao desejável! Ainda assim, parece cada vez mais provável que, devido à falta de recursos humanos, em contexto pandémico, muitos Médicos - a especializarem-se há vários anos em Psiquiatria e Saúde Mental -  sejam chamados “para a linha da frente”, a exercer uma prática clínica de medicina generalista, na qual já não têm a destreza que certamente gostariam, para se sentirem perfeitamente confortáveis a exercer essa missão.

Surgem assim os dilemas... Numa mão, a vontade de ajudar, de participar na primeira linha da batalha, de atender a necessidades mais emergentes... Na outra, a perceção de que, onde somos mesmo bons é a tratar outros tipos de “dispneias” e “taquicardias” ... aquelas que não têm uma causa fisiológica evidente, por mais evidente que seja o sofrimento que provocam...

Por um lado, ter de ser contentor de sentimentos e emoções dos outros - que apesar de expectáveis e muitas vezes normativos, podem ser extremos e intensos, ao ponto de paralisarem os indivíduos. Por outro, tentar conter a nossa própria “humanidade” - que nos leva a sentir como sentem os outros, sem conseguirmos ser, os heróis que muitos esperam que sejamos!

 

Lídia Sousa

 

 

Covid-19 e crianças em casa

31.03.20

Todos enfrentamos momentos desafiantes de doença e possibilidade de doença que provocam situações inesperadas no dia-a-dia. As recomendações de permanecer no domicílio, o encerramento das escolas, problemas económicos decorrentes de inatividade ou desemprego obrigam as famílias a uma total reorganização. São múltiplas as dificuldades em conciliar a permanência em casa com crianças e arranjar formas de garantir cuidado e vigilância ou tentativas de trabalho remoto com crianças em casa.

As crianças também são afetadas pela quarentena, sentem as diferenças na rotina habitual, estão atentas às alterações nos adultos à sua volta, absorvem as suas preocupações, momentos de tensão e stress. É crucial, como figuras de referência, mantermo-nos calmos e tentar perceber ou procurar maneiras de ultrapassar as dificuldades que vão surgindo, adaptando uma nova realidade a cada dia.

Por isso, é importante respondermos às questões que as crianças colocam e adequarmos as respostas a cada idade e situação, focando no bem-estar e partilhando informações úteis e práticas. Devemos explicar o porquê na mudança de algumas rotinas de forma simples. É normal uma sensação de insegurança e dúvidas quando nem os próprios adultos/pais/cuidadores sabem o que esperar. É essencial ajudar a filtrar e interpretar a informação circulante e mudanças nas rotinas, de modo a minimizar a ansiedade e tranquilizar, transmitindo sensação de segurança e controlo.

Crianças abaixo 6 anos: não precisam de informações detalhadas e têm dificuldade em interpretar as notícias, pelo que as explicações devem ser simples e factuais. As crianças precisam de ser tranquilizadas em relação ao cuidado e saber que a família está segura e saudável.

Crianças mais velhas: é natural que já tenham informação acerca da doença e muitas dúvidas. Para evitar versões assustadoras, distorcidas ou falsas, conversem regularmente com eles, respondam às perguntas enquanto realizam as atividades do dia-a-dia, enquanto brincam, permitam que sejam eles a expor as dúvidas, que sejam eles a orientar a discussão, encorajem-nos a partilhar sentimentos e mantenham diálogo aberto, em vez de uma “grande conversa” com explicações excessivas e preocupações que não são deles.

Pode surgir o pedido para brincar ao “faz-de-conta” como médicos/enfermeiros ou temas de brincar relacionados com morte, vírus e doença, o que será normal e expectável; aproveitem a oportunidade para explicar o papel dos profissionais de saúde, a doença e a importância do cuidar. É uma forma de as crianças exteriorizarem e lidarem com os seus sentimentos de medo. 

Relativamente ao uso de máscaras: expliquem que às vezes usamos máscaras quando estamos doentes; quando deixamos de estar, não precisamos de usar mais. Não é um disfarce e conseguimos falar na mesma; não são “os maus” que usam, nem precisam de ter medo; apenas usam máscara porque estão doentes. Expliquem que todos podemos ficar doentes mas se a criança ficar doente os pais/cuidadores vão estar com ela e cuidar dela até ficar melhor, com ajuda dos médicos, se necessário.

Nos dias que correm, é imperativo manter as rotinas diárias o mais consistentes possível; restabelecer rotinas antigas ou criativamente construir novas rotinas, ajudando a implementar uma sensação de normalidade e segurança. Mostrar disponibilidade emocional para além de presença física. É importante passar tempo com as crianças, reassegurar, transmitir calma e segurança; limitar exposição ao fluxo de informação constante dos media acerca do Covid-19 e tentar distanciar-se quando em discussões/debates entre adultos acerca do tema. Lembrem-se que as crianças conseguem sentir a tensão e preocupações das pessoas que as acompanham. É um momento apropriado para praticar e treinar rotinas de higiene em casa.

Uma vez em casa, sem ir à escola: estabeleçam objetivos, horários de trabalho/estudo para todas as áreas lecionadas na escola e organizem tempo de lazer/brincar; mantendo um funcionamento “escolar” e não de “férias”. 

De seguida apresentamos algumas dicas/atividades que poderão ser realizadas:

 

 

Associativismo em Tempos de Pandemia

31.03.20
"They are casting their problems at society. And, you know, there's no such thing as society…” 

Margaret Thatcher, Revista “Women's Own”,1987

Arriscar-nos-íamos a dizer que, volvidas algumas semanas desde o início deste período de excepção nas nossas vidas, o momento que enfrentamos presta-se a, de uma penada, nos permitir desmentir cabalmente a Srª Thatcher.

Sem uma sociedade manifesta por uma rede colaborativa e comunitária, em que a realidade do outro é colocada a par da nossa, sem um movimento global de empatia, não estaríamos nunca em condições de enfrentar este desafio.

Dentro de todos os atores responsáveis por esta mobilização ímpar, gostaria hoje de destacar o papel dos movimentos associativos. Pelo seu surgimento súbito, colocando em causa os paradigmas de eficiência previamente vigentes, a pandemia de COVID-19 obrigou as estruturas centrais a uma mobilização sem precedentes, dirigida ao combate a esta doença e a tudo o que esta implica, reconhecendo por vezes gorada a sua capacidade em corresponder a todas as solicitações. No terreno a organização de todos em torno de objetivos comuns, materializada, entre outros projetos, em associações (mais ou menos antigas, mais ou menos estruturadas, mas sempre envolvidas e ativas) procura assegurar respostas rápidas, orientadas e ajustadas a múltiplas realidades, aprofundando algo que não pode deixar de ser repetido: não se vence uma pandemia sozinho.

A Associação Portuguesa de Internos de Psiquiatria, cuja acção pretendemos focar, remonta ao ano de 2005, quando um grupo de médicos internos em Psiquiatria decidiu unir-se em torno de uma causa comum, a defesa da formação em Psiquiatria no nosso país. Desde então, várias têm sido as actividades levadas a cabo pela nossa associação, desde eventos de uma enorme qualidade científica, participação social e defesa acérrima da qualidade formativa do internato em Psiquiatria, que têm contribuído para o seu reconhecimento actual na área da saúde mental e no papel representativo de mais de 300 médicos internos. A este crescimento foi essencial a construção de pontes com outros importantes interlocutores na área – Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, Ordem dos Médicos, Plano Nacional de Saúde Mental ou até, mais recentemente, da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, relevando o desejo de um trabalho colaborativo em Psiquiatria.

Esta atitude colaborativa permitiu-nos chegar aos dias de hoje com uma visão estratégica de como nos deveríamos colocar na resposta a este flagelo. Em primeiro lugar, procurámos garantir junto da Ordem dos Médicos e da Administração Central dos Serviços de Saúde, respostas às múltiplas questões que se colocavam numa altura de mudança abrupta do quotidiano dos estágios formativos. Assegurada a urgência de compreender a situação formativa dos internos de Psiquiatria, voltámo-nos para a participação na intervenção em saúde mental durante este período. Contactámos e fomos contactados por diversas estruturas, colaborámos com a Universidade do Minho para prestar apoio psicológico a profissionais de saúde (disponível aqui), com a Administração Regional de Saúde-LVT, Hospital Fernando da Fonseca, Direcção Geral de Saúde e Plano Nacional de Saúde Mental na divulgação de material informativo para profissionais de saúde e público em geral (disponível aqui); Aliámo-nos a designers que, voluntariamente, nos ajudaram no desenvolvimento de material de divulgação relativo a formas de combater o stress durante a pandemia (pode encontra-lo aqui); Juntámo-nos aos restantes autores deste blog para fazer chegar a mais gente informação sólida e útil; Mantemos contacto com os principais responsáveis na área da saúde mental para ajudar os internos de Psiquiatria e os Serviços Locais de Saúde Mental da melhor forma que conseguimos. Mais do que isto, fomos solicitados por inúmeras entidades e colegas para podermos estar presentes em cada momento de um processo que para todos é confuso e desafiante, e nada nos poderia deixar mais orgulhosos de todos quanto connosco têm participado desta luta. Importa ressalvar também que, numa altura de multiplicidade de iniciativas e actores, promovemos sempre a acção conjunta e estruturada, evitando duplicação de recursos e de mensagens, procurando concertar esforços na importante mensagem a passar, na promoção da saúde mental de todos.

Como a nossa Associação existem inúmeras, focadas nas suas respetivas áreas de intervenção mas permanentemente ligadas entre si, partilhando dificuldades, ideias, soluções, problemas, no fundo, partilhando o peso deste desafio que carregaremos todos até ao seu desenlace.

E é esta uma das razões pelas quais guardamos uma boa dose de otimismo nestes dias. A cooperação em torno de um objetivo comum, que tece uma fina malha em permanente adaptação a novas realidades.

Muitos de nós, médicos, serão chamados para a linha da frente por estes dias. Vai ser necessário muito suor, um pouco de sangue e algumas lágrimas, dizem.

Neste campo de batalha, valha-nos o planeamento estratégico e a cooperação.

Valham-nos os objectivos comuns e a comunicação eficaz.

Valha-nos o associativismo.

 

Pedro Frias e Diogo Almeida – Associação Portuguesa de Internos de Psiquiatria

 

Quem guarda os guardiões?

29.03.20

Numa altura em que crescem as manifestações de solidariedade e gratidão para com os profissionais de saúde, particularmente aqueles que se encontram na linha da frente, nunca será demais refletir sobre as consequências para a sua saúde desta batalha que travam por todos nós.

São fáceis de perceber os riscos físicos a que se expõem, nomeadamente num contexto de falta de adequado material de proteção, que aumenta o risco de infeção por SARS-CoV-2. A ilustrar isto, há quase duas semanas a Ordem dos Médicos já informava que cerca de 20% dos casos de COVID 19 eram Médicos... Não houve palmas à janela que lhes valessem!

Por todo o lado, chovem relatos de profissionais de saúde de várias classes (Médicos, Enfermeiros, Técnicos Superiores de Saúde, Assistentes Operacionais...) que não têm ao seu dispor os equipamentos de proteção individual necessários para garantir a sua segurança, tentando a todo o custo obtê-los fora das instituições e, muitas vezes, sem qualquer apoio financeiro.

Mas, como este é um blogue de saúde mental, seria também de esperar uma chamada de atenção para as consequências que esta pandemia terá na sua saúde mental.

O cansaço, decorrente de horários de trabalho alargados (para compensar o aumento da afluência aos serviços e a falta dos profissionais que estão já em casa, doentes ou em isolamento profilático), o afastamento das famílias (que fazem voluntariamente, tal é o medo de contagiarem os conviventes) o constante medo de contaminação e o confronto diário com a fragilidade da vida humana e , num futuro próximo, a necessidade de tomarem decisões de vida ou morte - sim, porque se em Itália e Espanha já se pratica Medicina de catástrofe, escolhendo-se quem vive e quem morre, por cá não estaremos já muito longe desse cenário, infelizmente - levarão certamente a estados de exaustão emocional e sofrimento psicológico sem precedentes.

Neste sentido, cabe aos serviços de Psicologia e de Psiquiatria e Saúde Mental, um papel primordial no apoio aos profissionais de Saúde. Vários Centros Hospitalares anunciaram já iniciativas que visam prestar este apoio aos seus profissionais. No entanto, por vezes é mais fácil falar de sentimentos e expormos as nossas fragilidades com pessoas com quem não contactamos diretamente e cujos rostos não vemos nos corredores diariamente.

Assim, fica aqui novamente divulgada uma iniciativa que conta já com a colaboração de cerca de 200 Psiquiatras de todo o país e que visa utilizar a telemedicina para chegar a todos os profissionais de saúde, que tenham necessidade de uma consulta de Psiquiatria. Todos os interessados podem inscrever-se e obter mais informação em www.p5.pt/apoio. Ser-lhes-á agenda uma consulta de telemedicina, com um Médico Psiquiatra voluntário, em horário que seja conveniente para ambos.

De igual modo, os Psiquiatras voluntários poderão registar o seu interesse em www.p5.pt/voluntario. Para mais informações pode também ser usado o contacto de email cuidar@p5.pt.

 

Se juntos somos mais fortes, vamos também cuidar de quem cuida! Porque nesta luta NÃO HÁ HEROIS!

 

Lídia Sousa

Off the beaten track

27.03.20

Tropecei neste artigo e identifiquei-me com aquilo, assim à bruta. Eu, que sou dado a melancolias, já começo a dar por mim com saudades do tempo pré-apocalipse. Nessa altura, naturalmente, também me queixava, e tinha saudades de outro tempo pré-qualquer-coisa-do-momento. E assim, andando para trás, lembrei-me do Steve, um gajo simpático de Chicago que conheci na Islândia há uns vinte anos. Há vinte? Porra, há vinte.

Não era nenhum nabo, o Steve. Era um WASP informado que vivia no lado certo da cidade, sabia que existia um mundo complexo para lá do alpendre da casa da mãe (mum is like, hum, an interior designer, you know?) e tinha sensibilidade social e ambiental. O cenário da ilha - a Björk só poderia ser islandesa - e a idade convidavam a reflexões pseudo-filosóficas mais ou menos regadas com a cerveja local. Sobre a natureza e a vida moderna e paleio do género nesse longínquo ano, tão analógico, de 1999 tirávamos conclusões inequívocas e finais: isto está tudo uma porra. Fucked. Ele anuía perante as minhas considerações existenciais e exortações à mudança, mas respondia, invariavelmente e com um encolher de ombros: but then who cares, you know?

Entretanto, todos estes anos passaram. E ficámos ainda mais estúpidos. Dumb. No início era a cena da globalização. Globaliza não globaliza antiglobaliza. As techs, as dot-com. Os telefones, as viagens, os gadgets. A net e o hi5 e o não-sei-quê que olha-até-já-fechou. O faicebuque. As cenas que agora são muita baratas. A China e coiso. O tempo acelerado. E certas coisas passaram, devagarinho e de pantufas, a ser normais. A comida vem dentro de uma caixa. Agora até já dá para aquecer a comida dentro da caixa. Who cares, you know? Os fins de semana passaram a ser dias como os outros. Tudo está aberto às horas todas. Há guito. Que fixe, man.

Depois veio a crise. Já não há dinheiro, mas há budgets e montes de cenas “optimizadas”. Os gajos da finança lixaram isto, mas também têm as soluções. E os caixões. Tudo é obsoleto. Deslocaliza-se, vai para o online, desmaterializa-se. Automático. Smart. De um lado o tech e a cena virtual, do outro lado a malta a penar sem dinheiro, sem vida e sem email. Trash. Não reconvertível. As tragédias afinal são liabilities, geríveis com comunicação e networking. O Exxon Valdez era um petroleiro que em 1989 derramou crude e provocou um gigantesco desastre ambiental na costa do Alasca; A Deepwater Horizon (onde estava ao certo?...) em 2010 foi um escândalo corporate e teve que pagar imenso dinheiro. Um prejuízo do catano.

E nós, os dumb, ficámos dumber. Inicialmente até parecia que não. A malta passou a viajar (ainda) mais, a preocupar-se com o corpo, com a comida, com os animais. O ambiente. O bem-estar, a cena emocional e tal. Em vez de empresários havia empreendedores, tipos novos e fofos vestidos de t-shirt e jeans, a criar apps e cenas green que mudariam o mundo as we know it. Mas depois, dumber. Lembro-me de ver uma mulher a fazer um escarcéu porque numa viagem de barco percebeu que o tipo que nos levava de passeio aproveitava para pescar à linha. Please. Oh my God. Stop.

 

 

Obsessão ou Compulsão: eis a Questão?

27.03.20

No atual contexto pandémico, multiplicam-se os conselhos e recomendações relativamente a medidas de higiene, etiqueta respiratória e outras estratégias para reduzir a possibilidade de contágio da Covid 19. Vimo-nos obrigados a alterar muitas das nossas rotinas e, embora uns tenham aderido mais do que outros às medidas de proteção, não é infrequente ouvirmos relatos de pessoas que se queixam de que “estamos todos a ficar obsessivo/compulsivos, com a mania das limpezas”.

Pois bem, antes de mais, importa clarificar o que são obsessões (pensamentos e/ou imagens mentais indesejadas, repetitivas e intrusivas) e compulsões (comportamentos que se impõem à vontade do indivíduo, muitas vezes realizados de forma ritualizada). Depois, torna-se imperativo diferenciar uma Perturbação Obsessivo/Compulsiva (patologia psiquiátrica que se carateriza por pensamentos intrusivos e comportamentos compulsivos, muitas vezes ritualizados, gerando grande ansiedade e perturbação, nomeadamente consumindo muito tempo (>1h por dia) e interferindo com a vida normal do doente, suas rotinas, ocupações e vida social) de traços de personalidade obsessivos (padrão estável de comportamento, desde o início da vida adulta, caraterizado por perfecionismo, rigidez e inflexibilidade, não causando no entanto sofrimento ou disfuncionalidade significativos).

Por último, será também importante clarificar que a definição de comportamento normal depende sempre do contexto. Assim, no panorama atual, alguém que passe mais de 1h por dia a executar procedimentos de limpeza , aos quais até se possa associar algum grau de mal estar - pois ninguém gosta de estar condicionado a medidas de higiene e proteção tão rigorosas, como as que se exigem numa pandemia - não se classificaria imediatamente como tendo sintomas obsessivos nem compulsivos, mas, mais provavelmente, como estando a adotar um comportamento adaptativo e a ter uma reação emocional expectável, numa situação de catástrofe.

Portanto, se é verdade que os doentes com Perturbação Obsessivo/Compulsiva podem experienciar agravamento dos seus sintomas durante uma epidemia - principalmente nos casos que cursem previamente com preocupações de limpeza - e até não seja descabido considerar que alguém com traços de personalidade obsessivos possa, nesta fase, adotar medidas mais “rigorosas” do que seria de esperar, não há nenhuma razão para começarmos a catalogar as pessoas que adotam medidas de higiene e precaução mais “intensas” como sendo portadoras de alguma patologia mental. Na conjuntura atual, o melhor que nos pode acontecer é pecar apenas pelo exagero da proteção. A fronteira com a doença será estabelecida, como aliás na generalidade das patologias mentais, pelo sofrimento e disfuncionalidade que os comportamentos e/ou pensamentos possam gerar ao individuo.

Em última análise, não estamos todos a ficar obsessivo/compulsivos, estamos todos, isso sim, muito ansiosos e apreensivos, como seria de esperar nesta situação. Mas é importante ressalvar que não devemos usar os rótulos de patologias mentais levianamente, o que se configura como completamente contraproducente, pois contribui para uma visão estigmatizadora da doença e das pessoas com doença mental e para uma banalização do sofrimento de quem de facto tem um diagnóstico psiquiátrico.

 

Lídia Sousa

 

Unidos contra o estigma associado ao Covid-19

26.03.20

Lamentavelmente, surgem notícias de episódios de rejeição e violência dirigidos a pessoas infetadas pelo SARS-CoV-2. Ambulâncias com pessoas infetadas apedrejadas e violentamente atacadas com engenhos explosivos . Ataques racistas e xenófobos dirigidos a comunidades de chineses ou outras populações asiáticas. São reações que surgem do medo da doença, da necessidade de atribuir culpa e de boatos e mitos disseminados, mas que têm que ser evitadas, já que o mero bom senso empático antecipa o sofrimento que podem causar e a evidência científica mostra claramente que dificultam a resposta às doenças transmissíveis.

Na doença mental, o estigma é fenómeno bem antigo, disseminado e estudado. A origem do termo “estigma” remonta à Grécia Antiga, onde significava uma queimadura ou cicatriz feita no corpo de maneira a denotar que o seu portador era um escravo, um criminoso ou um marginal, devendo ser evitado e excluído de locais públicos. O estigma social mantém-se hoje e é uma ameaça à identidade da pessoa, traduzido em atitudes de discriminação, censura, rejeição e marginalização de um indivíduo ou grupo de indivíduos com caraterísticas consideradas indesejáveis. Na doença mental, está bem estudado que o estigma tem, muitas vezes, efeitos mais nocivos do que a doença em si, pela autoestigmatização, pelo impacto na autoestima, pela retirada social e não procura de cuidados de saúde e pela dificultação da recuperação do indivíduo e da sua integração social.

O estigma social associado ao Covid-19 é assunto tão sério que motivou que fossem emitidas recomendações específicas sobre como o enfrentar:

  • As palavras importam. Ao falar sobre doença por coronavírus, certas palavras com significado negativo (por exemplo, caso suspeito, isolamento, guerra...) podem perpetuar estereótipos, fortalecer falsas associações entre a doença e outros fatores, criar medo generalizado ou desumanizar aqueles que têm a doença. Deve ser incentivado o uso de terminologia que separa a pessoa do vírus. Devemos referir “pessoas que têm”, “pessoas que estão a ser tratadas”, “pessoas que recuperaram”, “pessoas que morreram após contrair” Covid-19, não terminologia que dá a uma pessoa uma identidade definida pelo vírus (por exemplo, casos Covid-19, pessoas Covid-19, famílias Covid-19).
  • Divulgar os factos. Dar prioridade à recolha, consolidação e disseminação de informação rigorosa sobre as áreas geográficas afetadas, a vulnerabilidade individual e de grupo, as opções de tratamento e onde e como aceder aos serviços e informações de saúde. Enfatizar a efetividade das medidas de prevenção, de triagem, de teste e de tratamento precoces.
  • Amplificar vozes, histórias e imagens positivas de pessoas que tiveram o Covid-19 e que recuperaram ou que apoiaram um ente querido e estão dispostas a contar como foi. Evidentemente, respeitando a confidencialidade.
  • Envolver os influencers sociais, para estimular a reflexão sobre pessoas e profissionais de saúde que são estigmatizados e como os apoiar.
  • Retratar diferentes grupos étnicos. O vírus não tem como alvo grupos raciais ou étnicos específicos, pelo que a doença não deve ser vinculada a nenhuma etnia ou nacionalidade.
  • Promover um jornalismo ético. A comunicação social pode ser muito útil para disseminar informação rigorosa, usando linguagem simples. Deve mostrar cuidado e empatia por todos e não culpar indivíduos específicos por infetarem outros.

O combate ao estigma é feito pela partilha de factos, e só os factos, não o medo, vão parar a propagação do Covid-19.

Manuela Silva

Como assegurar a saúde mental dos profissionais de saúde?

26.03.20

As situações de catástrofe, independentemente da sua natureza, põem em causa a integridade física e emocional das pessoas. Pelas perdas humanas, materiais e alterações situacionais por demais desestruturantes, interferem significativamente com o equilíbrio das pessoas, famílias e sociedades.

Em tempos de crise como o que vivemos actualmente, os profissionais de saúde são expostos continuamente a situações extremas, sendo postos em causa o seu bem-estar ou sobrevivência. Os serviços de saúde vêem-se agora sobrecarregados e com respostas claramente insuficientes, daí resultando uma imensa pressão laboral sobre os profissionais e, não infrequententemente, a sensação de impotência face às necessidades reais de acção. A isto soma-se ainda o elevado risco de infecção a que estão sujeitos no trabalho – agravado pela gritante escassez de equipamentos de protecção individual - e o medo de contágio dos familiares (ou separação física dos últimos para anular este risco, situação igualmente geradora de stress).

Se os profissionais de saúde que estão agora na linha da frente do tratamento de doentes com COVID-19 (seja nos cuidados primários, seja em meio hospitalar) estão sujeitos a todos estes factores de stress, também aqueles que se encontram a trabalhar partir de casa poderão sofrer com ansiedade antecipatória, perante a possibilidade de serem chamados para substituir colegas infectados e, eventualmente, virem a exercer funções fora das suas áreas de diferenciação, na prestação de cuidados a doentes infectados com o SARS-CoV-2, para as quais se sentem, e poderão estar, claro está, menos bem preparados.

A exposição repetida ao stress poderá permitir o desenvolvimento de estratégias adequadas para enfrentar os desafios ou, por outro lado, potenciar um mal-estar contínuo, provocando efeitos cumulativos que acabam por enfraquecer os recursos, tornando os indivíduos sucessivamente mais vulneráveis e menos aptos para enfrentar estas situações. O papel do stress na saúde mental está já bem documentado, sabendo-se hoje que este representa o principal factor de risco ambiental para doença psiquiátrica. De facto, períodos contínuos de stress associam-se a maior risco de depressão e outras patologias psiquiátricas, sendo que a evidência científica sugere ainda uma possível associação entre quadros depressivos e um risco acrescido de infecção.

A sociedade espera que os profissionais de saúde, agindo como ‘super-homens’, honrem um juramento acima de qualquer prioridade. Assim, como se de seres invulneráveis e indiferentes à dor nos tratássemos, somos despidos de emoções, desconsiderando-se as nossas vulnerabilidades. Ora, todos sabemos que nós, profissionais de saúde - apesar de aprendermos, com o tempo, a gerir as emoções no contexto das nossas funções - não sentimos nem mais nem menos que qualquer outro ser humano. Assim sendo - e agora mais que nunca - não pode ser esquecido que os profissionais de saúde, para além de prestarem apoio aos doentes (vítimas primárias), têm de lidar com as suas próprias emoções e sentimentos.

Por tudo isto aqui exposto, torna-se fundamental o reforço do apoio psicossocial de todos os profissionais de saúde de uma forma precoce e preventiva. É importante que sejam fornecidas estratégias para que estes consigam não só lidar com o outro, mas também aceitar o impacto dos acontecimentos sobre si próprio e reconhecer as próprias emoções, de forma a minimizar a sensação de perda de controlo e permitir a gestão de potenciais sentimentos negativos.

Também os recursos sociais e organizacionais ganham aqui um papel de extrema importância. Tendo em conta o impacto negativo da imprevisibilidade e incontrolabilidade das situações traumáticas, torna-se imprescindível a garantia de que todas as possibilidades sejam previstas e os procedimentos bem definidos. Para minimizar o potencial efeito cumulativo, deve estipular-se a rotação das equipas, com adequado tempo de descanso, realizar treino das situações e adequar as estratégias inerentes à situação concreta. Isto resultará, idealmente, numa atenuação das reações emocionais peri-traumáticas, reduzindo assim o risco de desenvolvimento de psicopatologia.

 

Desta forma, existem algumas estratégias para a manutenção do bem-estar, que se recomendam, nesta altura, aos profissionais de saúde (de acordo com o CSTS):

-

 

Pág. 1/3